Resley Saab – 07h00min
Junho de 2020. A enfermeira Monna Maia Dimas varou a noite cuidando de pacientes intubados, ao som dos bipes intermitentes dos ventiladores mecânicos nas cabeceiras das camas de UTI do Hospital de Campanha do Instituto de Traumatologia e Ortopedia (Into), de Rio Branco. Exausta, mas atenta ao que se passava na ala, naquela madrugada ela seria testemunha do apelo dramático de uma médica pela vida de sua paciente grávida, cujo estado de saúde havia entrado em colapso total.
Num ato de desespero para alguns, mas um gesto de amor para muitos, a profissional se ajoelha diante da maca, levanta as mãos para o alto e clama a Deus, sem cessar, pela vida da jovem de 17 anos e seu bebê, cuja falência acabara de começar, sem qualquer esperança de retorno pela medicina dos homens.
“Me lembro da médica ajoelhada na frente do ventilador, orando a Deus para não deixar ela morrer. A gente já tinha feito tudo que humanamente era possível fazer. E a paciente não respondia. Infelizmente, veio a óbito”, recorda-se.
Monna, de 30 anos, natural de Cruzeiro do Sul, passou os últimos oito anos de sua vida cuidando de pessoas, desde que colou grau no curso de Enfermagem da Universidade Federal do Acre, em Rio Branco. Hoje é chefe do Atendimento Especializado em Feridas do Hospital de Urgência e Emergência de Rio Branco.
Mãe de Urik, de 3 anos, Monna sofreu a angústia de toda mãe chamada para trabalhar no front da pandemia de covid-19, a partir de março de 2020: o medo de não retornar para seus filhos, ou então de contaminá-los com a doença.
“A gente teve muitos óbitos de grávidas. É uma decisão muito difícil porque, a partir do momento em que a gente intuba uma pessoa, e uma grávida especificamente, a nossa prioridade é a mãe”, explica.
Ser mãe era um dos maiores anseios da enfermeira, que narra: “O Urik nasceu em 28 de outubro de 2018. Em 2019, fez um ano. Eu ainda estava me acostumando com o fato de ser mãe, que requer muita responsabilidade, quando em dezembro começamos a ouvir sobre a pandemia, que ainda estava num lugar muito distante, né? Em janeiro, eu comecei a ficar mais preocupada ao ver o avanço surreal, a velocidade e a proporção que a covid-19 estava tomando”.
Há quase uma década ela é enfermeira assistencial e havia sido escalada no início da pandemia para as atividades do Hospital de Campanha do Into: “Tudo isso alterou totalmente a minha rotina familiar. Era uma situação muito complexa, porque meu filho tinha apenas um ano e era muito apegado à gente. Chegar em casa era um momento muito triste, porque ele queria correr e me abraçar. E na maioria das vezes eu tinha que ficar atrás das grades. Eu sabia que vinha contaminada. Então, criamos um fluxo totalmente diferente de entrada em casa”.
A rotina da profissional tornou-se física e emocionalmente extenuante. “Durante exatamente um ano, eu ia dormir às 2 horas da manhã e acordava às 4h30, uma rotina muito pesada. Já passei a ficar três dias sem o Urik me ver, porque eu chegava em casa e ele estava dormindo. Saía e ele continuava a dormir. Mas nesse meio tempo, tive uma rede de apoio muito boa. O pai dele, Renardy Saraiva, 34 anos, é uma pessoa maravilhosa. Me apoiou bastante e, assim como a minha sogra, se preocupou muito com a minha saúde e com a do nosso menino”, relembra.
A salvação de Martinha
Mas a crise não trouxe apenas momentos ruins. E Monna carrega igualmente memórias gratificantes do período: “Se tivemos perdas de grávidas, me lembro também da primeira vez que a gente salvou uma. Vou chamá-la de Martinha, por não saber se ela gostaria de ser citada na reportagem com seu nome real. A Martinha era maravilhosa. Passou 70 dias intubada. Não respondia a nada. Muito, mas muito grave aqui no Pronto-Socorro. Então a gente chamou o médico obstetra pra dar uma olhadinha nela, e ele indicou retirar o bebê”.
A situação atípica chamou a atenção de Monna. “Eu cheguei nesse dia de manhã e a equipe comentou: ‘Hoje, a gente vai conhecer a filha da Martinha’. Aí, meu coração disparou: ‘A gente vai ter um parto durante a covid. Alguém avisou o pai? Não. Ninguém avisou’. Eu chamei o psicólogo e disse: vamos chamar o pai, né? A gente nunca dá notícia por telefone”, informa.
“Solicitei que viesse até a unidade e ele chegou lá na UTI, muito nervoso. Dei bom dia e ele não conseguiu sentar. Olhou para mim e me pediu: ‘Só fala que a minha mulher está viva. Só fala que a minha mulher está bem, por favor’. E eu falei: ‘Cara, senta que eu tenho uma notícia muito boa para te dar’. E ele sentou. Eu falei; ‘Hoje tu vais conhecer a tua filha’. Ele começou a chorar e eu acabei chorando também, porque a gente se envolve muito”, recorda.
E enfim nasceu o bebê. “A coisa mais linda do mundo. Alguns dias depois, a mãe saiu. Foi extubada, começou a andar, a fazer fisioterapia e foi para casa. Só conheceu a filha dela quando teve alta hospitalar. Que coisa mais gostosa. Deus, foi bom demais com a Martinha!”, exulta Monna.
Uma vida simples, porém, cheia de responsabilidade
“Nossa, que legal! Você vai contar a minha história? Então vamos lá. Só esperando a moça chegar aqui pra ficar com a turma enquanto eu vou falar com você lá fora. Depois de tantos dias longe das salas de aulas, hoje estamos aplicando a avaliação diagnóstica aos alunos. Meu nome é Fabíola de Oliveira Melo, tenho 28 anos, sou professora do ensino fundamental das séries iniciais e há quatro tenho um contrato provisório no Estado e um efetivo na prefeitura [de Rio Branco]”, conta a educadora.
E continua: “Meus filhos são o Edson Rafael, de 2 anos e 8 meses, e o Edson Ramon, de 9 anos. Meu esposo é o Renato Alves, agricultor. Ele passa todos os dias de semana na colônia, na Transacreana. O nome Edson é do meu avô e de meu pai, porque o primeiro foi em vida um homem virtuoso. Meu pai, Francisco Edson de Quadros, ainda vive. É casado com minha mãe e também é virtuoso”.
Fabíola é espontânea e, bem assim, de cara, foi compartilhando um pouco de sua vida simples, porém cheia de significado, como professora na Escola Estadual de Ensino Fundamental Maria Hildebranda da Pra, no bairro Cidade Nova.
“Desde a infância, eu tive esse sonho de ser professora. Então ser educadora não foi falta de opção, foi uma escolha, porque ainda criança eu já vivia a rotina de um professor. Minha mãe, Ednilza Oliveira, é professora aposentada do estado. Por 30 anos, ela trabalhou na Escola de Ensino Fundamental Floresta, no Projeto Moreno Maia. E a minha infância foi toda dentro de uma escola e nas formações aqui em Rio Branco, porque minha mãe se deslocava da zona rural para participar delas e eu a acompanhava. Ela não tinha com quem deixar os filhos”, lembra.
Como quase todos os educadores, Fabíola Melo passou por dias difíceis, lecionando remotamente de casa: “Foi um desafio imenso. Não só pela falta do contato físico com o ambiente escolar, mas porque as pessoas esquecem que professora é também mãe e dona de casa. Havia dias que o mais [filho] novo chorava por trás das gravações das aulas e eu tinha que ampará-lo”.
A educadora afirma que acorda todos os dias às 4 horas. Faz o café da manhã, toma banho, produz o planejamento das aulas, acorda os meninos e os três caminham para as escolas: a Willy Viana, do mais novo, também na Cidade Nova, e depois para a Maria Hildebranda da Pra, onde o mais velho, Edson Ramon, estuda. Fabíola é também sua professora.
“Ele estuda comigo. Eu fiz essa escolha porque o acompanhei durante a pandemia, nas aulas remotas, e pelo fato de eu já estar lecionando na etapa em que ele está. Foi uma solicitação minha para a escola, de ele continuar na minha turma, pois fiquei até preocupada com o desempenho dele num primeiro momento, já que não sabia como ele poderia reagir. Eu estudei com a minha mãe e a gente tem aquele sentimento de ver o professor como um docente, mas nunca como mãe ou pai”, conta Fabíola.
“Eu fui mãe bem jovem, com 18 anos, mas, quando terminei o ensino médio, o meu sonho já era fazer a faculdade de Pedagogia, de ser professora. No momento em que se tem filho pequeno, talvez muitas mães imaginem que é hora de parar, que não dá mais certo. Mas temos que fazer dos nossos filhos a nossa motivação. Eles não são empecilhos, são a motivação”, diz ela, que conseguiu ser aprovada no curso de Pedagogia da Ufac, mas optou por uma faculdade a distância somente para poder ficar mais perto das crianças.
Uma mãe à prova de – quase – tudo
Hêgina Barros, 38 anos, servidora da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão do Acre, acredita que ser mãe é um dom e o filho, um presente. Mãe de Flávia, de 11 anos, e de Helena, 8, ela diz que viveu duas maternidades muito diferentes uma da outra. “Mas não me sinto nem mais nem menos especial do que qualquer outra mãe”, afirma.
“Eu apenas luto para que os direitos das minhas filhas sejam preservados e cumpro meu papel da melhor maneira que posso”, relata. Helena nasceu com a síndrome de Miller-Dieker, uma desordem genética rara que tem como características anomalias craniofaciais congênitas, malformações cardíacas, retardo do crescimento e deficiência intelectual. Essa condição, no entanto, não desestimulou a família a desfrutar uma vida de muitas realizações.
Pelo contrário, como Hêgina ressalta: “Não escolhemos como os nossos filhos irão nascer e não escolhemos a maternidade atípica. Mas a gente pode decidir o que fará para ter uma vida plena e feliz. Não me restam quaisquer dúvidas que sempre farei o que for melhor”.
Com boa dose de lucidez e amor no coração, ela dispara: “Toda mãe deve amar seu filho incondicionalmente. Apesar de carregarmos grandes responsabilidades e tamanha quantidade de tarefas e papéis que precisamos desempenhar, nossos filhos devem ser a nossa prioridade. É esse amor que nos deixa mais perto de Deus! Ser mãe é o maior privilégio que tenho nessa vida”.
O carinho e o amor das pessoas por Helena, e não menos por Flávia, é tão grande que, antes da pandemia de covid-19, Helena foi chamada a fazer parte de um projeto chamado Porta em Porta – criado por uma mãe que também tem filho com deficiência, cujo cerne é encorajar essas crianças a se tornarem modelos fotográficos para campanhas publicitárias de lojas.
“Com a chegada da pandemia, resolvemos preservá-la mais, por ter imunidade baixa e o risco de contaminação poder levar para uma situação mais grave”, diz a mãe, que em março de 2017 conseguiu na justiça que o Estado fornecesse equipamentos e insumos para terapia necessários ao tratamento da criança.
Para Hêgina Barros, é preciso dar o carinho que os filhos necessitam: “Todos precisam de atenção. A Helena precisa um pouco mais de cuidado por conta da deficiência, mas a Flávia também. E eu não me vejo diferente, eu me vejo com a mesma garra que toda mãe tem por um filho, porque a gente não quer ver nenhum deles nem gripado, imagina deficiente”.
Mamãe solo e provedora da casa
O bilhete de homenagem escrito pela filha, na festa antecipada do Dia das Mães da escola, ainda estava à espera de ser lido, no fundo do bolso do jaleco da enfermeira Jonnyka Lima, 36 anos, chefe de uma ala do Pronto-Socorro (PS) de Rio Branco apinhada de pacientes e de profissionais apressados em dar vencimento às demandas médicas.
A cartinha era para ser entregue ainda na escola em meio a bolo, doces e balões. “Mamãe, você foi a única que não foi à festinha hoje. Senti sua falta, mas entendo que você estava salvando vidas”, disse a menina Ana Sofia, de 10 anos, apressando-se em entregar o registro feito à mão e cheio de coraçõezinhos, quando Jonnyka foi buscá-la na escola, na manhã da última terça-feira, 3.
Na tarde do mesmo dia, a enfermeira topou conversar com a reportagem, ainda que num intervalo muito breve por conta do trabalho intenso no PS. “Me deu um aperto no peito. O bilhete dela ainda está aqui no fundo do bolso. Não tive tempo nem de almoçar ainda [já passava das 15h30]. Mas vou ler a cartinha dela assim que terminar a entrevista”, prometeu a mãe, de olhos marejados.
Jonnyka Lima é viúva. O marido, Joubert, morreu há 11 anos. Com ele, teve Lohan, hoje com 13 anos. Atualmente ela tem um companheiro, Patrick. “A Ana é de outro relacionamento”, conta, “ela é muito inteligente, muito à frente do seu tempo, apesar da pouca idade”.
E continua: “Já o Lohan é um dos meus orgulhos. Eu sou mãe-solo, lá na nossa casa somos só nós três. Tudo sou eu quem providencia, sou a provedora do lar. Nós, mães que trabalhamos na saúde, já somos ausentes por conta de plantões que, muitas vezes, precisamos dobrar para poder ter uma remuneração melhor e sustentar nossas famílias. E com a pandemia, o trabalho triplicou”.
Sobre os impactos do período pandêmico para a família, Jonnyka apresenta o seu relato. “As nossas rotinas já eram exaustivas e muitos colegas, infelizmente, morreram. Com a equipe reduzida, a gente precisava vir praticamente todos os dias ao hospital. Por isso, os meus filhos foram seriamente prejudicados. Houve problemas muito sérios e Lohan teve sua terapia atrasada. Hoje tento minimizar as consequências disso tudo. E vou conseguir”, destaca ela, em tom de reflexão.
Assim como a colega Monna Dimas, cuja história abriu esta reportagem, Jonnyka participou diretamente do socorro a pacientes com covid-19 e ficou conhecida por uma postagem em que aparece exausta, pedindo para que as pessoas permanecessem em casa no auge das contaminações pelo novo coronavírus.
Jonnyka encerra nossa entrevista – e esta reportagem – com uma homenagem bastante especial: “Eu sei que muitas mães passam por situações iguais ou bem mais delicadas do que a minha, e o que posso desejar para elas é força. Sei que pode parecer clichê, mas as mulheres são guerreiras. Então, que esse dia possa ser de muita significância, que elas possam se sentir abraçadas, acolhidas, porque as dores e as lutas são muitas. Parabéns, de coração, a todas as mães do nosso Acre. Elas merecem todo o reconhecimento do mundo”.